Mostrando postagens com marcador problemas complexos. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador problemas complexos. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 15 de setembro de 2020

Doação de dados: você está preparado para essa conversa?


Existe um grande debate em torno do monopólio dos gigantes (Big Techs) da plataforma digital que conhecemos como WWW ou Web. Oferecendo produtos e serviços que atendem muito bem as necessidades das pessoas, essas empresas conquistam e concentram o mercado. Definido como uma situação particular de concorrência imperfeita, o monopólio não surge apenas da coerção, feita por governos através de leis que visam proteger um único agente. Existem setores que apresentam uma barreira de entrada natural tão grande, que geram monopólios espontâneos. Também tem aquele caso onde os concorrentes apresentam produtos e serviços tão diferentes, que de fato não fazem concorrência uns com os outros e formam a concorrência monopolística.

Então? Em qual desses casos de monopólio se encaixam as Big Tech? Nenhum. Alphabet (Google), Facebook, Apple, Microsoft e Amazon, não são beneficiadas por nenhuma reserva de mercado. Todas essas empresas têm concorrentes. Podemos pensar numa concorrência monopolística? Strava, por exemplo, é uma rede social que oferece a oportunidade de conhecer e interagir com praticantes de esportes do mundo inteiro. Um produto excepcional que, no entanto, não oferece concorrência ao Facebook. Usuários do Facebook não querem saber se seu “treino está pago”, e o Facebook não oferece ao atleta o que Strava oferece. O mesmo acontece com Facebook e Linkedin. Temos contas em diversas redes sociais porque, embora parecidas (perfil, posts, feed, like, comentários, amigos, etc), elas são substancialmente diferentes. A barreira de entrada para esses negócios é baixíssima! Quem nunca ouviu dizer “começou numa garagem”? Por que, embora tenha concorrentes, o público se concentra em uma ou outra plataforma?

O monopólio das Big Tech tem suas peculiaridades.Você pode comprar roupas numa loja com mais alguns milhares de desconhecidos enquanto seus amigos se espalham comprando em centenas de lojas que você nem sabe que existem. Tá tudo bem. No entanto, ninguém quer ficar numa rede social onde os amigos, ou aqueles com quem se deseja se relacionar, não estejam. Também não queremos comprar onde existam poucas avaliações e recomendações. Além de oferecerem boas soluções para seus usuários, os produtos das Big Tech se beneficiam do atributo REDE. Nós nos aglomeramos voluntariamente em torno delas e involuntariamente somos agentes dessa concentração. Tente imaginar o que aconteceria se a gente conseguisse deletar todas as redes sociais tipo Facebook, e começar de novo, com centenas de pequenos concorrentes, todos oferecendo serviços absolutamente iguais, numa concorrência perfeita! (Por favor, não deixe de me mandar comentários dizendo o que você acha que aconteceria!).

Outra peculiaridade dos monopólios digitais é que eles não são temidos por porque têm poder e controle sobre o mercado. Eles são temidos porque têm poder e controle sobre os dados. Talvez acabe sendo a mesma coisa porque o mercado das Big Techs na verdade, são os dados... 

Dito tudo isso, podemos afirmar que temos uma boa visão sobre problema do monopólio das Big Tech. Por que não conseguimos enfrentá-los? Porque, embora estejamos vendo bem, não estamos enxergando direito. Só existe uma maneira de regular a concentração de poder que tanto tememos: a velha, temida e injustiçada abordagem dos dados abertos.

Toda empresa que coleta dados, tem a obrigação de dar a governança e o direito de utilizá-los (tudo previsto em acordos sociais conhecidos). A cessão dos direitos de uso é condicional, portanto temporária. Só quem tem direitos permanentes sobre o uso dos dados, são os agentes de onde eles foram extraídos. Em palavras simples, seus dados, sobre você, seus hábitos, ações e relações (seus “não dados” inclusive), pertencem a você e a você é assegurado o direito de fazer o que quiser com eles. Você vai me perguntar: se eu posso fazer o que eu quiser com eles, por que não posso impedir que essas empresas usem meus dados? Porque você assinou um contrato quando começou a usar os serviços dela: serviço de graça (ou por um valor X) e, em troca, todos os seus dados poderão ser usados “na melhoria dos serviços prestados”. Não é só isso. A empresa disse também pra você não se preocupar porque ela não vai “compartilhar seus dados com ninguém”. Pronto. Você cedeu os dados, aceitou que fossem usados e garantiu o monopólio de uso para essa empresa.

E agora? Agora você exerce o poder de fato (você já tem por direito) e torna-se um doador de dados. Voluntariamente, declare que seus dados devem ficar disponíveis para que uma plataforma de dados pública1 os colete e disponibilize a serviço da inovação. Não, isso ainda não existe, mas deveria existir. 

Uma plataforma pública de dados seria um lugar onde os dados proprietários voluntariamente cedidos, ficariam disponíveis e acessíveis para todos2. Há muito o que se pensar para um modelo de negócio desse tipo, até porque existem parâmetros e inspirações para ele, mas não precedentes. Poderia se exigir, por exemplo, que aqueles que desejem usar os dados dessa plataforma pública, sejam doadores de dados. Pode-se exigir das plataformas sociais privadas que anonimizem os dados e disponibilizem, através de APIs, aqueles que fossem doados pelos seus verdadeiros proprietários.

Permita-se um tempo para pensar na ideia. Com o tempo você vai entender e aceitar que dados compartilhados estão muito mais protegidos do que dados aprisionados. O seus dados já são usados de qualquer maneira, mas estão gerando valor exclusivamente para um agente desse ecossistema.

Dados digitais são imprescindíveis para a visualização e abordagem de problemas complexos. Sabe o que são problemas complexos? Aqueles com uma infinidade de causas, correlacionados com outra infinidade de fenômenos e que, para completar, são dinâmicos por natureza. Um problema complexo nunca acorda do mesmo jeito que dormiu, porque a rede que o sustenta é formada por agentes vivos, autônomos, que fazem escolhas e emitem informações o tempo todo. Exemplos? Violência. Educação. Pandemia. Terrorismo. Pobreza. Todos esses problemas são complexos e por definição não possuem soluções. O máximo que conseguimos fazer com problemas complexos, é controlá-los o tempo todo e para sempre.

Todo mundo conhece a fórmula de sucesso do controle de algo: conhecer. Quanto mais informações temos sobre um problema, melhores as chances de controlá-lo. É preciso mapear e gerenciar, o tempo todo e para sempre, o máximo de informações possiveis. Sabe onde estão os dados que podem ajudar nesse processo? Em mãos privadas. Precisamos de acordos sociais que garantam o acesso coletivo a dados coletados de indivíduos. Essa necessidade é tão humana e tão premente, que podemos apostar que uma solução desse tipo, certamente está a caminho. Claro que uma boa regulamentação para proteção de privacidade se aplicará à uma plataforma pública. Se você confia em um acordo social feito com uma empresa para a proteção de seus dados, não tem porque não acreditar que o mesmo acordo pode ser feito para uma plataforma pública . Se não confia, melhor excluir todas as suas contas do Google, Amazon, Facebook, Linkedin, Apple, Microsoft e etc.

Existem várias maneiras de fazer uma plataforma pública de dados digitais doados tornar-se um excelente modelo de negócio para todos os envolvidos (stakeholders, se você preferir). Se a gente abraçar a ideia, as soluções chegam.

Você já doa seu tempo como voluntário em uma causa que defende, mesmo que seja apenas escrevendo um texto e publicando ou debatendo nas redes sociais. Talvez até doe dinheiro. Muitos são doadores de sangue e órgãos. Doamos o que temos sobrando e não nos faz falta, e mesmo que faça, é muito pouco em comparação com o benefício que pode gerar na causa que recebe. A próxima vez que pensar em doar algo para uma causa nobre, considere a doação de dados.

Você está preparado para essa conversa?


1 Pública não é sinônimo de estatal
2 Aí também poderiam ficar os dados abertos por default (os chamados dados públicos, que já são abertos por natureza), mas para esses ao menos já existem acordos sociais para compartilhamento.

sexta-feira, 15 de junho de 2018

Então a Espanha será a campeã do mundo


Gosta de futebol? Gosta de Copa do Mundo? Gosta de big data? Você pode gostar disso também: o jornal Financial Times analisou alguns dados para apontar o melhor time desse mundial (France, Germany, Brazil, Spain: who has the best World Cup squad?). Como você deve ler essa matéria?

Lembre-se que DADOS NÃO FALAM! Se você pegar um data set, mesmo que completo, limpo, estruturado, todo bonitinho, ainda assim ele não falará nada. Falar é comunicar e para isso é preciso haver uma mensagem. Toda mensagem é fruto de um somatório de vieses e isso é inevitável! Isso quer dizer que, com o mesmo dataset, diferentes analistas entregariam diferentes informações.

Um viés já aparece quando se formula a pergunta, mas vamos imaginar que a pergunta seja a mesma para todos, portanto que não houve escolha nessa etapa. A pergunta que o FT se fez foi: Que país tem o melhor time na Copa?
O que significa ter o melhor time da Copa? Não há consenso sobre isso. O FT optou por considerar o “somatório” da qualidade e experiência dos jogadores. Uau! Aqui já temos um grande viés! E vai piorar! Esse processo de definir o que responde à pergunta feita, chamamos de DATAFICAÇÃO. Você nem percebe, mas nesse momento esta´definindo que dados responderão à sua pergunta.

E agora vamos enviesar mais. Vamos montar o algoritmo: o que é qualidade e experiência? Para o FT, qualidade é ter jogado nos times melhores. Experiência é a soma dos minutos jogados em competições de elite. Para não complicar muito, nem vou entrar no detalhe de que ‘melhores times’ e ‘competições de elite’, já são um poço de vieses!

Pronto. Agora sim alguém falou alguma coisa (e não foram os dados, heim?): A Espanha tem o melhor time. Seguido pela Alemanha, França e Brasil. A Itália ficou bem perto, mas nem se classificou para a Copa... No final das contas, o melhor time mesmo será o que levar a taçã para casa! A conferir!

Não existe certo ou errado nas escolha de um processo analítico. Só temos que saber que são escolhas e quais foram elas (tudo a ver com a discussão sobre transparência de algoritmos). Nas escolhas do FT foram desconsiderados quantas Copas o país participou, quantos minutos os jogadores jogaram juntos, o histórico do técnico e muitos outros atributos importantes e às vezes não relacionados com futebol. Mas, escolhas são escolhas e eles deixaram as deles bem claras!

Agora um detalhe final: uma parte muito importante da mensagem data driven é como você entrega o resultado da sua analítica, processo mais conhecido como VISUALIZAÇÃO DE DADOS (nome bem equivocado, mas deixa assim...) Diga aí, o que você achou dessa? Uma boa visualização de dados mostra claramente a sua resposta para a pergunta feita. Se alguém precisar tomar uma decisão baseada nisso, que seja rápida e inequívoca. Se entregar essa analítica para um bom designer especializado em visualização de dados, o FT consegue coisa bem melhor!

Para descontrair: boa visualização de dados mesmo está no mapa que o jornal espanhol usa para falar da previsão do tempo no país. Numa feliz sacada o FT comenta: a Espanha ignora solenemente Portugal, e não somente no esporte! As duas seleçoes estreiam hoje se enfrentando. Imperdível!

OBS: Todas as fotos são da matéria do FT

terça-feira, 8 de agosto de 2017

Abre-te, Sésamo! A inauguração do “universo paralelo da paz” no Oriente Médio

Bahrein, Chipre, Egito, Iran, Israel, Jordânia, Paquistão, Turquia e Autoridade Palestina (ANP). Começando assim, parece que estamos diante de mais um texto sobre desentendimento, intolerância e guerras. Mas não, esse texto não é sobre guerras.

Não me lembro mais como tomei conhecimento da existência do SESAME, nem que motivações e conexões mentais me fizeram seguir dezenas de hyperlinks na Internet para descobrir essa história incrível que compartilho aqui com vocês.

SESAME é um acrônimo para Synchrotron-light for Experimental Science and Applications in the Middle East. Não se assuste... não pare de ler ainda porque SESAME também é a palavra mágica que abre a caverna onde está escondido um inestimável tesouro! Um sincrotron é uma espécie acelerador de partículas, semelhante ao Grande Colisor de Hádrons do CERN (Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear). No CERN os cientistas fazem colidir partículas para estudar a origem das suas massas. Um sincrotron, simplesmente faz as partículas ‘dançarem’ para produzir uma luz de grande intensidade e alto brilho: a ‘luz sincrotron’. Essa luz é perfeita para a observação de objetos nanométricos, aqueles que possuem dimensões na escala atômica ou molecular, que não podem ser vistos nem mesmo com um microscópio (proteínas e vírus, por exemplo). Deve ser uma coisa incrível, né? Digo ‘deve ser’ porque, como muitos dos que estão lendo isso, meu arcabouço de conhecimento não é suficiente para apreender a importância do SESAME para a física quântica. Mas isso não tem a menor importância porque esse texto também não é sobre o avanço da ciência e esse não é o maior tesouro que o SESAME nos oferece.

O SESAME nasceu de uma ideia muito louca. A ideia era promover a cooperação entre árabes e israelenses para a ciência. Os loucos eram o israelense Eliezer Rabinovici e o italiano Sergio Fubini, ambos cientistas do CERN. Rabinovici, sabia da importância da cooperação para a ciência e se inquietava em ver que a falta de diálogo dos países do Oriente Médio (provocado por divergências religiosas, econômicas e políticas), reduzia a quase zero a sinergia potencial entre os cientistas da região. Fubini coordenava um grupo de cooperação científica para países do Oriente Médio. Em 1994 eles decidiram que estava na hora de tirar do papel o que eles chamavam de ‘universo paralelo da paz’: colocar inimigos históricos num mesmo laboratório, pesquisando e produzindo ciência.

Os dois se auto empossaram membros de um comitê científico que teve como primeira ação organizar um encontro de cientistas em Dahab, Egito, próximo ao Deserto do Sinai. O encontro discutiu missão e possibilidades, mas o plano de ação que faltava só surgiu em 1997, quando um grupo de cientistas alemães resolveu doar para o SESAME um acelerador antigo, oriundo da recém extinta Alemanha Oriental, que estava prestes a ser substituído por um mais moderno. Alguns membros do SESAME relutaram em aceitar alegando que um equipamento tão antigo não atrairia cientistas. Rabinovici foi decisivo mais uma vez, dizendo coisas mais ou menos assim: 'Claro que temos que aceitar! Precisamos rápido de algo concreto porque não vamos querer construir uma coalizão de Árabes e Israelenses em torno do ar!' Em 1999 o empreendimento recebeu o nome de SESAME, sugestão de um membro da Autoridade Palestina. Em 2000 o grupo decidiu instalar o equipamento na Jordânia: “Tinha que ser na Jordânia. Era o único lugar onde todos poderiam ir”, disse Rabinovici referindo-se ao fato de que era o único país com relações diplomáticas com todos os outros.

O SESAME ainda precisaria da autorização da UNESCO para construir um laboratório para aceleração de partículas, dados os riscos que experimentos dessa natureza oferecem. Imagine convencer a UNESCO de que cientistas do Bahrein, Chipre, Egito, Iran, Israel, Jordânia, Paquistão, Turquia e Autoridade Palestina (ANP) acelerariam partículas em paz... A aprovação da UNESCO veio em 2002. Seguiu-se a construção da planta, a montagem do equipamento e o primeiro teste veio em 2009.

Toda a história do SESAME (que inclui até sobreviver ao terremoto de 6.9 graus de magnitude que ocorreu no Egito no dia do encontro em Dahab) vale a pena ser lida, mas eu ficarei por aqui. Dou agora um grande salto para o dia 16 de maio de 2017, quando o laboratório foi totalmente concluído e aberto para os cientistas dos países membros. Infelizmente, uma notícia muito pouco divulgada. Mais triste ainda é que a pouca divulgação que recebeu fique ofuscada por tanta notícia da chamada agenda negativa, seja no mundo como um todo, seja no local onde vivemos e atuamos.

Esse não é um texto sobre guerras nem sobre avanço da ciência, é sobre a resiliência humana diante do negativo e da destruição. O ser humano está conectado pela necessidade e paixão de produzir conhecimento. O SESAME levou 20 anos para acontecer, mas aconteceu porque a rede do conhecimento desconhece os obstáculos impostos por outras redes. As religiões pregam dogmas incompatíveis que geram intolerância e a rede de conhecimento os ignora. As nações riscam no chão as fronteiras que dizem “daqui não passarás”, mas a rede de conhecimento as ignora. O mercado produtivo coloca as informações em cofres gerando alto custo de transação, mas a rede de conhecimento os ignora. As instituições de ensino pregam o erro como algo a ser evitado, colocando os humanos em desconfortáveis zonas de conforto, mas isso a rede de conhecimento também ignora.

O mundo hoje é muito melhor do já foi em qualquer tempo e até muito melhor do que imaginamos que seja. Isso se deve apenas à resiliência da rede de conhecimento que constrói e direciona valor para onde é necessário.

Vida longa ao SESAME que nesse texto foi apenas o pretexto para falar do conhecimento como o 'universo paralelo da paz'.

Eliezer Rabinovici e Sergio Fubini, larguem as partículas subatômicas dançando por aí e saiam pelo mundo contando essa história.