terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Marco Civil da Internet e Inovação

Marco Civil da Internet e Inovação

Quatro traços da cultura brasileira que nos impedem de inovar


Amanhã, 19/02/14, o congresso brasileiro deve começar a votar o marco civil da internet. Trata-se de um projeto de lei que "visa consolidar direitos, deveres e princípios para utilização e desenvolvimento da Internet no Brasil". 

A definição acima é do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI) criado em 1995 para coordenar as iniciativas de serviços de Internet no Brasil. O projeto de lei foi elaborado em um processo colaborativo coordenado pela Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça em parceria com a FGV Rio e segue os "Principios para governança e uso da Internet" estabelecidos em 2009 pelo CGI.

O CGI é formado por membros do governo, empresários e representantes do terceiro setor e da comunidade acadêmica. São aproximadamente 20 pessoas representando esses setores de modo a garantir diversidade de entendimento e de interesses.

Além disso, o projeto foi submetido diversas vezes à consulta pública desde que foi iniciada sua discussão ainda no ano de 2009.

Tudo isso colocou o Brasil em destaque no que diz respeito a definição de um marco regulatório para utilização da Internet.

No entanto, algumas coisas me preocupam. Não pretendo fazer críticas nem dar palpites no projeto, primeiro porque não sou especialista em leis e depois porque, para criticar e dar palpites vários canais foram abertos como já citado acima.

Queria apenas pontuar algumas coisas que sublinham fortemente cinco traços da cultura brasileira que gritam no texto do Marco Civil, como que implorando por reflexões...

1. Comecemos obsessão reduntante por novas regras e leis. Vejamos dois quesitos do projeto que tratam  da privacidade e da guarda de registro. 

Os itens que garantem os direito à intimidade e à vida privada  (capítulo II, art 7, item I)são importantes, mas na minha opinião já estavam garantidos em outras leis. Do mesmo modo o direito à inviolabilidade da comunicação privada, salvo por ordem judicial (capítulo II, art 7, item III) , também já é garantido em nosso país.

Aqui aparece o primeiro traço da nossa cultura que eu gostaria de mencionar: quando nos deparamos com algo novo, acreditamos ser necessária uma legislação específica para regulá-lo. Assim, leis já existentes e abrangentes o suficiente para lidar com as novas questões não são aproveitadas gerando um aporte desproporcional de recursos para criar uma nova lei, em grande parte de sua extensão, dispensável.

2. Quando fala da inviolabilidade do fluxo das comunicações (capítulo II, art 7, item II), o texto começa a mostrar o desconhecimento sobre redes, a importãncia de estudá-las e o papel dos dados digitais nesses estudos. A maioria das pessoas que já tiveram contato com esse assunto o conhecem pelo nome de big data. Nesse projeto, pelo menos até a versão de hoje, não há uma única pista de que os legisladores estejam atentos à importância dos dados digitais para a ciência e para a inovação.

O fluxo de comunicações entre as pessoas nos permite elaborar um mapa do sistema complexo chamado sociedade e esse mapa pode nos levar à compreensão de fenômenos ainda não explicados e consequentemente não resolvidos pela ciencia. E isto não inclui apenas fenômenos sociais. Está comprovado que a comunicação, o principal link que conecta pessoas, forma uma rede que sustenta também fenômenos como a disseminação de doenças, a propagação de vírus eletrônico ou as crises finaceiras. 

O texto também parece desconhecer as propriedades das redes complexas que garantem por exemplo que os conhecimentos acima podem ser obtido sem a utilização do conteúdo da comunicação e sem a identificação nominal das pessoas envolvidas.

É como se existisse uma lei que proibisse a utilização das informações do fluxo de correspondencias controlado pelos correios para entender a movimentação de volumes no país. Ou que proibisse a analise do fluxo de passageiros de companhias aéreas para estudar a mobilidade das pessoas. Ou o fluxo das transações financeiras e assim por diante.

Aqui estaria um segundo traço da nossa cultura: temos uma grande inércia para inovação. Apesar de todo acesso que temos à informação temos dificuldades em identificar pontos de inflexão no cenário internacional e mais dificuldade ainda em incorporá-los em nosso contexto. A comunidade cientifica americana estuda Ciencia das Redes e big data há mais de 10 anos. Em 2012 o conselho nacional de pesquisa americano recomendou o assunto big data ao governo americano e em poucos meses o presidente Obama anunciou o Big Data Research and Development Initiative liberando recursos para pesquisas, para premiar iniciativas que aumentassem a capacidade analítica do país e assumindo compromissos para alavancar a utilização de dados digitais priorizando as áreas de saúde, defesa, energia e estudos geológicos.

3. Outro ponto sintomático do texto é o que fala sobre a utilização de dados pessoais (capítulo II, art. 7, item VIII). Primeiro porque não faz distinção entre dado e informação. Acredito que o legislador se refere a informações quando diz que "dados pessoais só poderão ser usados para as finalidades que justificaram sua coleta." No entanto, do jeito que está o texto, todos os dados são pessoais porque são registros digitais da nossa utilização da rede. Além disso, a esmagadora maioria deles não foi coletado para finalidade nenhuma. São os rastros de navegação que deixamos ao usar a Internet que também têm valor inestimável como já explicado em outros posts desse blog. 

Em outra parte do texto (capitulo III, sessão II, parágrafo 1), que fala da proteção dos registros de navegação, é sutilmente reconhecida a existência dos rastros digitais. No entanto, ao mesmo tempo que diz expressamente que o responsável pelos dados só pode disponibilizá-los mediante ordem judicial (paragrafo 2), o texto se omite quanto à utilização desses dados pelo próprio responsável que certamente os utilizará, como tem sido feito até então. Se você já leu a política de privacidade do Google ou Facebook, por exemplo, já viu que, sob pretexto de preservar sua privacidade, prometem não compartilhar seus dados de navegação, mas a mesma política diz que pode eles poderão utilizá-los para melhorar seus serviços ou lançar serviços novos. O parágrafo 3 dessa mesma sessão garante também acesso aos dados por parte de autoridades administrativas... Ou seja uns poderão ter acesso e utilizar os dados, outros não.

Essas restrições reforçam o terceiro traço cultural, que é uma das coisas mais perversas para a sociedade como um todo: uma forte inclinação para reforçar a assimetria de informação. Sem querer entrar em questões de poder, vou apenas mencionar que a assimetria de informação é uma das principais responsáveis pelo refreamento da inovação, assim como são, em certo sentido, as patentes. Para mudar esse contexto desfavorável, existe um movimento chamado open data e você pode ler mais sobre isso em outro post desse blog (clique aqui) ou  no site do Open Data Institute.

4. Outra coisa interessante aparece fora do texto do projeto, mas é dirigida a ele. Em carta aberta ao deputado ralator do projeto Alessandro Molon, encaminhada no dia 10/02/14, diversas entidades da sociedade civil ameaçaram retirar o apoio que davam ao projeto. Embora tenham razão em alguns dos questionamentos, chama atenção a justificativa que deram para não concordar com a obrigação de guardar os registros de navegação (acesso às aplicações): segundo eles, a guarda desses dados para uso eventual da justiça "amplia a possibilidade de espionagem" e funciona como "uma espécie de grampo compulsório (...) invertendo o princípio constitucional da presunção de inocência". 

Me parece que, à luz da importância dos dados digitais para a inovação, uma legislação altamente restritiva à sua utilização faz exatamente isso: inverte o principio constitucional da presunção de inocência. Não guardamos os dados porque eles podem ser usados para espionagem.

Esse seria o quarto traço cultural a ser destacado: embora a presunção da inocência seja um direito constitucional, nossas leis são desenvolvidas baseadas no contrário, criando uma burocracia que nos impede de inovar, ou limita essa possibilidade a poucos que conseguem custear ou contornar esses obstáculos.

5. A carta ressalta ainda que a obrigação de guardar os dados no Brasil poderá estimular as empresas a comercializar esses dados para compensar os custos da sua governança. 

Claro que não devemos exigir guarda de dados no Brasil, mas não pelo motivo alegado! Esse argumento aponta o quinto e ultimo traço cultural que o marco civil da internet nos obriga a enxergar em nosso país:  temos um desprezo generalizado pela ética. Um ponto específico de uma lei não é adimitido porque pode incitar uma prática que a mesma lei proibe. É assustador. Em nosso país a ética talvez seja a palavra que guarde menor relação entre sua aparição em discursos e sua utilização na prática.

E assim estamos prestes a aprovar uma lei que já nasce caduca porque despreza a parte mais importante daquilo que está legislando. E tudo perfeitamente justificável por traços culturais que além de guiar nossas leis, nos impedem de inovar.






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